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Livraria Africanidades: cultura negra na zona norte de São Paulo




Dificilmente se pensa para além do centro se o assunto é cultura em São Paulo. Quando muito, os bairros de Pinheiros e Vila Madalena são acrescentados às referências de estabelecimentos literários paulistanos. A mim, moradora da zona norte da cidade, sempre incomodou essa suposta ausência de iniciativas culturais não só na minha região, mas também em outras áreas periféricas de uma das maiores metrópoles da América Latina. Seria mesmo real essa carência de empreendimentos, ou apenas conveniência, já que os grandes veículos responsáveis pela indicação desses espaços são alimentados justamente por quem costuma frequentar só as partes mais privilegiadas da urbe? Pensando nisso, decidi prestar mais atenção aos meus próprios territórios e nesse passeio acabei encontrando a Livraria Africanidades, que hoje trago para a rota do nosso quadro Itinerários.


Era uma manhã de sábado claro quando visitei a livraria. A zona norte é tão grande que mesmo morando aqui precisei tomar dois ônibus para chegar à Cachoeirinha, onde fica a livraria. Do ponto até lá são alguns minutos de caminhada em direção ao interior do bairro, por ruas majoritariamente domiciliais em que é possível topar com crianças jogando bola, cachorros tomando sol, homens lavando seus carros e senhoras conversando na calçada — sim, isso existe em São Paulo e é uma das minhas paisagens favoritas da periferia. Quem me recebeu abrindo o portão da residência foi a psicóloga Thamyres Montani, com quem compartilho o apelido, o que serviu para nos aproximar de alguma forma desde o momento inicial. Lá dentro me aguardava a proprietária Ketty Valencio, bibliotecária por formação e mulher negra solar. Não é possível falar sobre a Africanidades sem focar na figura da Ketty, responsável por ela. Sua postura a um só tempo combativa e serena transmite a força inabalável de quem repele o inimigo e abraça o aliado com a mesma facilidade, por meio da crença na dignidade das próprias lutas. Coisa de quem tem muita sabedoria e equilíbrio. Foi com sorrisos e café que ela me recepcionou, na cozinha iluminada pelo dia e decorada com mensagens antirracistas, antifascistas e pró-cultura (melhores tipos de mensagem, não?), sob os olhos de Marielle e Angela Davis. Imediatamente me senti acolhida.


A livraria surge em 2013 como uma resposta à ausência de literatura negra no mercado literário. Enxergando aí um bom nicho mercadológico, Ketty vale-se dele para promover um ambiente que envolve tanto o comércio de livros de autoria negra quanto outras propostas socioculturais com temáticas africanas, sobretudo as afro-brasileiras. Extrapolando o campo da literatura, o espaço preto da livraria Africanidades acolhe distintas linguagens artísticas produzidas pela cultura negra e voltadas à comunidade negra, como atendimento psicológico, aulas de yoga e oficinas de estamparia. Como um centro cultural, a diversidade defendida e evocada pelo local reflete-se já em seu nome, Africanidades no plural, de modo a transmitir a pluralidade do que é ser negro a partir do próprio negro, combatendo a lógica supremacista branca ao alimentar os conceitos de africanidade cunhados por fundamentos da negritude. Dentre as alternativas de valorização da cultura afro oferecidas pela Africanidades está um clube de assinaturas que trimestralmente envia aos assinantes, além de livros, itens criados por afro-empreendedores. A intenção do clube é ser uma ferramenta de estímulo à leitura de obras com protagonismo de pessoas negras, valorizando especialmente as narrativas de mulheres negras e produtos do setor de afro-empreendedorismo como um todo. Jarid Arraes, Ryane Leão, Bianca Santana e Esmeralda Ribeiro são curadoras da iniciativa que leva o projeto de Ketty Valencio a viajar pelo país, rompendo as fronteiras espaciais e alcançando pessoas que por alguma razão não podem visitar a livraria física.


Segundo Ketty, o público da Africanidades reflete sua própria identidade. Grande parte de quem frequenta o local é formada por mulheres negras periféricas envolvidas com literatura, assim como ela, mas o espaço também se abre à comunidade a seu redor. A proprietária preserva acima de tudo a ancestralidade, diz aprender muito com as pessoas mais velhas e deseja a permanência desses ensinamentos por meio de seu trabalho. A casa é espaçosa e ao mesmo tempo aconchegante. Suas paredes quentes e vibrantes, desenhadas, escritas e estampadas pelas impressões de artistas e visitantes, lembram ninho e refletem o colorido característico de África. Desse modo, Ketty transforma esse pequeno ponto da zona norte paulistana em um espaço de continuidade da identidade negra que funda todo o Brasil, além de acabar com a ideia nociva de que literatura e cultura só se encontram em São Paulo no eixo centro-Pinheiros. A livraria abre com hora marcada e transcende seu objetivo comercial, atuando como reduto de resistência do passado, convivendo com o presente que definitivamente precisa se ancorar naquele. Pra que não se esqueça, pra que tudo permaneça vivo e cada vez mais dono de si. Conversei com a Ketty sobre a Africanidades e você pode se encantar como eu assistindo ao vídeo abaixo. Essa é uma boa chance de percorrer o local sem precisar sair de casa, mas que seja apenas um estímulo à visita presencial. Nada como sentir o toque solar das africanidades com a própria pele.


Onde? Rua Paulo Ravelli, 153 - Vila Pita, São Paulo - SP, 02478-040


Saiba mais sobre a Livraria Africanidades no vídeo que gravamos para o canal do LiteraTamy:




 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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