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"O guardião de nomes" e o poder definidor das palavras




Quanto pode o nomear? Até que ponto o nome dado às pessoas define suas personalidades, sucessos e fracassos? O guardião de nomes (Rua do Sabão, 2022), primeiro romance de Leonardo Garzaro, joga com essas perguntas e mostra que, ao menos na literatura, a nomeação tem grandes poderes definidores. O livro centra-se na história da família do barão Álvares Corrêa, homem tirânico e maquiavélico, dono de vasta propriedade rural. Ele acredita que a boa administração tem início na seleção dos nomes que povoam suas terras e, por isso, é o responsável por batizar todos os nascidos ali, reconhecendo na linguagem um instrumento de poder que reafirma seu status de proprietário absoluto.


O problema começa quando o barão entra em conflito com a esposa sobre o nome que deveria receber o sétimo filho do casal. A disputa chega a fins trágicos e termina por deixar o caçula sem nome. Seu nascimento é visto pelo pai como princípio e causa de toda a desgraça familiar que o sucede e, como castigo, ele é condenado a existir como “a única criatura nascida na vasta propriedade do barão Álvares Corrêa que não detinha um nome escolhido pelo patriarca. Ou qualquer nome. Era um silêncio”. Se, por um lado, a falta de nome instaura um vazio no personagem, por outro ela o liberta do peso categórico que a nomeação parental exerceria sobre os rumos de sua vida. Podendo decidir por conta própria qual papel assumir, o filho inominado acaba por tornar-se, ironicamente, o guardião de nomes que intitula o livro, uma espécie de bruxo das palavras que, a partir delas, é capaz de determinar o destino dos nomeados. Sem demora, essa função mística se espalha por toda a região, abrindo espaço para diversos episódios de nomeação que comprovam sua competência e encorpando a obra com narrativas variadas, paralelas à principal, relacionadas às influências do nomear. Uma dessas historietas é a de Próspero, que nasce gigante e cresce um anão, raivoso e impiedoso. Aos poucos, a figura quase fantástica ganha protagonismo e afeta diretamente o fio narrativo central da obra, que se ergue numa configuração engenhosa, fruto de onze anos de trabalho e estudos onomásticos do autor.



A própria noção de narrativa é fundamental à trama, conferindo ao livro certo aspecto metaliterário que se desdobra em diferentes níveis de sua construção. O guardião de nomes, por exemplo, é dado a conhecer pelos relatos que outras pessoas contam a respeito dele, e as personagens que procuram soluções oferecidas por novos nomes são motivadas e mobilizadas pelas narrativas que escutam – “disseram que naquela terra havia um homem que guardava nomes” é o refrão que abre boa parte dos capítulos sobre essas buscas. Além disso, as narrativas se encarregam de entrelaçar as gerações familiares e o destino dos protagonistas ao dos coadjuvantes, atando o romance num grande vínculo feito de histórias. O percurso de seus personagens compõe uma defesa à ideia de que o nome não se dobra ao sujeito, sendo maior e mais permanente do que aquele que nomeia, sobrevivendo, então, tanto aos nomeados quanto aos próprios nomeadores. Para isso, o texto assume traços barrocos e não poupa a escrita de floreios, recursos retóricos e elaborações formais que reforçam a importância das palavras para o rumo dos acontecimentos.


Percorrendo anos de trajetórias distintas, o tempo da narrativa é brumoso, impreciso e, junto do espaço, contribui para o aspecto meio fabular do livro. Essa aparência indefinida alimenta seu potencial alegórico e legaliza diferentes interpretações da obra, como a que surge na contracapa da edição da Rua do Sabão, de Montsserat Villar González, apresentando a trama enquanto recriação da história do Brasil. Decerto há alguma intenção autoral que valida a visão do romance como reconstituição histórica, conforme mostra a entrevista com Garzaro. A figura do barão por si, seu imenso poderio e toda a configuração familiar dos Álvares Corrêa retomam as origens da sociedade brasileira que, ainda hoje, segue moldada por princípios patriarcais, enquanto o guardião de nomes, renegado por essa mesma tradição, representa um desvio transgressor à norma e se torna, justamente por isso, revolucionário em alguma medida – ainda que reproduza, de certa forma, o comportamento soberano do pai.


Embora trate de temáticas sérias, como as raízes opressoras do país e o uso das palavras como ferramenta política, e desde o princípio pareça evocar qualquer coisa de grave em seu estilo, quase catedrático (sobretudo pela forte aposta na sonoridade dos trechos iniciais, cujos efeitos de eco penetrante fundam uma melodia que se mantém harmoniosa por toda a prosa), o romance não se furta do humor, alçado especialmente em torno dos desvios morais dos homens e suas manias delirantes – e um tanto cômicas – de grandeza. Essa jocosidade afasta o texto do pedantismo em que facilmente poderia despencar e faz da leitura um passeio que entretém sem se apressar. No fim da experiência, fica a impressão de que Leonardo Garzaro é tão bom quanto seu protagonista na escolha das palavras.


>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


Assista à entrevista com o autor no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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