Em 1972, nove integrantes do Movimento de Libertação Nacional foram capturados, torturados e, em 1973, transformados em reféns pela ditadura militar uruguaia. Entre eles, José Mujica, futuro presidente do Uruguai e editor de Memórias do calabouço, obra de dois dos militantes mantidos presos por doze anos, recentemente publicada no Brasil pela editora Rua do Sabão com prefácio de Eduardo Galeano e tradução de Ana Helena Oliveira e Paloma Santos. Maurício Rosencof, o Russo, e Eleuterio Fernández Huidobro, o Nhato, se reencontram para narrar o que viveram por mais de uma década detidos em calabouços. O reencontro rende 45 fitas cassete de relatos sobre o período, depois dispostos no livro que chega agora aos leitores brasileiros como um testemunho sóbrio dos efeitos do militarismo sobre os latino-americanos, um convite para que outros sobreviventes contem suas experiências. A história não é única para os presos, instalados em celas solitárias, mas há algo que se repete com todos eles: a desumanização a que são incansavelmente submetidos.
O livro se estrutura como uma grande conversa entre Russo e Nhato, um completando a fala do outro, ambos puxados pelo fio da memória. O que à primeira vista soa como um risco formal – afinal de contas, parece difícil manter o entusiasmo diante de um bate-papo tão extenso – se mostra, na verdade, uma boa escolha. Depois de tanto tempo impossibilitados de vocalizar a menor expressão que fosse, a chance de ouvir e registrar a própria voz e a voz de um companheiro que passou por martírio semelhante é uma valiosa oportunidade de recuperar qualquer coisa de humano que se perde em face ao constante silenciamento. A individualidade dos autores é respeitada por marcos no texto, ao mesmo tempo em que há certa força coletiva comovente no coral de vozes que ressoa a todo tempo na fala dos dois, mais um ponto positivo para o diálogo enquanto forma. Apesar do tema no mínimo complicado, é curioso como a prosa se faz descontraída, desembaraço seguramente viabilizado pelo caráter oral do discurso mas também garantido pela oportunidade de reviver o horror agora a salvo e acompanhado, podendo encarar o outro, com a leveza de se saber sobrevivente.
Mas o que eles relembram não deixa de ser angustiante. O quartel se torna o mundo e não apenas para os soldados mas sobretudo para os prisioneiros, trancafiados num ambiente arquitetado para arrancar deles até mesmo, ou principalmente, a própria sanidade. A começar pelo impedimento do contato humano e pela ausência de marcação temporal nos quartos escuros e quietos onde devem permanecer sempre calados, o que os faz duvidar de si mesmos. Nos calabouços o real passa a ser uma abstração, indistinto do irreal. O ódio dos militares aos civis, a quem enxergam como uma raça distinta (os civis negros, então, uma sub-raça, como mostram alguns dos capítulos), não surge de repente: é produto de uma preparação ideológica. Olhando em retrospecto, Nhato e Russo articulam breves análises antropológicas e socioculturais da vivência nos quarteis, frutos de suas formações como jornalistas e também como prisioneiros políticos. Confrontados com a lembrança do prazer que alguns soldados sentiam ao vê-los sofrer de fome, defendem que “a essência do sadismo como patologia dentro do Exército é absolutamente secundária; [...] a constante é a ‘normalidade’ em que se transforma um fato anormal”. Mauricio diz:
Estou um pouco relutante a considerar como doentes aqueles que se enfureceram mais durante as torturas, porque seria limitar a questão a graus de patologia. Esse oficial que tinha essa conduta com a gente era, simultaneamente, um dos mais queridos pela tropa. [...] Ou seja, era um indivíduo que tinha a suposta patologia somente no que se referia a nós. Acho que na raiz do assunto há uma questão mais profunda. A metodologia que o Exército usou foi fazer todos participarem: enfermeiros, médicos, oficiais, a tropa; todos tinham que se “se sujar” de alguma maneira, como garantia de que ninguém pudesse dizer: “fulano quem fez”. A segunda questão é que se instaurou um clima de deterioração moral: o menosprezo, a humilhação, a tortura, tornaram-se coisas cotidianas e naturais. (p. 248)
A certeza da impunidade facilitava o trabalho impiedoso dos oficiais, típicos homens de bem encontradiços na América Latina. A transformação de seres humanos pela aplicação de punições, prática comum no Exército, é uma faca de dois gumes a declarar que um soldado, filho do rigor, “deve sofrer como um condenado”. Ninguém escapa do dispositivo da vigilância e da censura porque o sujeito é o próprio dispositivo – e portanto tem de assumir sua parcela de responsabilidade. Como aqueles que torturam, por exemplo. Não só as sessões, que com razão se destacam, mas a própria condição de vida dos prisioneiros já era por si uma tortura perpétua, sem previsão de liberdade, gerando consequências vitalícias sobre os torturados. Por doze anos os autores tiveram que ir ao banheiro algemados e encapuzados (e somente quando os oficiais permitiam, é claro), viviam sem água, tendo de beber urina e se alimentar de comidas sujas, com bitucas de cigarro e terra perversamente adicionadas aos pratos. Assim era a vida dos prisioneiros, habituados à violência até não poder mais. Nem sequer os parentes em visita, mesmo as crianças, eram poupados dos flagelos que lhes roubavam os sonhos. Pior que isso seria apenas o desaparecimento repentino e misterioso a que muitos estiveram fadados, “companheiros mortos que não terminaram de morrer. Porque sua agonia ainda vive na incerteza de centenas de familiares que ignoram seu destino”.
De tudo ressalta a incomunicabilidade como instrumento de tortura. Cruelmente despossuídos do princípio humano básico da comunicação, e portanto completamente despersonalizados, Nhato e Russo enfrentam essa privação com a invenção de um novo idioma que os permite conversar de vez em quando por toques pouco ruidosos nas paredes divisórias dos calabouços. O exercício da linguagem se transmuta em prática de resistência. Esse procedimento improvisado fortalece a esperança teimosa que, segundo os autores, nunca os abandona no aprisionamento. Ainda que nada acontecesse e prevalecesse o angustiante estado de incerteza que, se na vida “livre” já é insuportável o bastante, na condição de cativos se fortifica; ainda que a prisão os tornasse dependentes dos soldados para as pequenas dinâmicas de individualidade, mesmo as fisiológicas; ainda que para sobreviver fosse preciso endurecer, Maurício e Eleuterio não perdem de vista o cartaz imaginário a ilustrar os muros tristes de suas celas com os dizeres aqui também se luta.
Por fim, cabe apontar certo incômodo causado por determinadas construções frasais em que os tempos verbais variam ao ponto de tornar algumas sentenças, ou mesmo parágrafos inteiros, confusos. Sendo essa uma característica do texto original, reproduzindo incoerências comuns na oralidade, uma nota tradutória na edição justificaria a manutenção dessas inconformidades que de vez em quando perturbam a leitura. De todo modo, o livro se apresenta como peça preciosa no conjunto de narrativas sobre as ditaduras sul-americanas. Como bem dito por Mauricio em entrevista à Época, suas memórias reunidas são como tijolos edificando um muro de resistência que bloqueia os caminhos da repetição, na intenção de impedir que ocorra novamente o que aconteceu com eles. Memórias do calabouço retrata o resistir para testemunhar, sem romantizar a resistência, mas valorizando-a como se deve; é um depoimento sobre permanecer humano, ainda que atacado por estratégias covardes de desumanização, pela expectativa de escrever uma história justa que considere a existência violada daqueles que foram silenciados, uma história que só poderia ser legitimamente contada por eles; um livro que hasteia a bandeira do NUNCA MAIS.
>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.
Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:
Tamy Ghannam
Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.
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