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A ORAÇÃO DO CARRASCO por vozes silenciadas



Ouvir os que foram calados: eis o objetivo principal de A oração do carrasco, de Itamar Vieira Junior, publicado pela editora Mondrongo. O livro, composto por sete contos, é uma afronta à naturalização do silêncio das minorias na medida em que as resgata da invisibilidade e lhes dá o protagonismo necessário para que sejam finalmente escutadas e tenham a oportunidade de conhecer a si por si mesmas, a partir do próprio discurso revelador.

O primeiro conto, “Alma”, é um excelente representante da atmosfera que permeará o livro. Narrado em primeira pessoa, traz como protagonista uma “mulher que caminha para frente”, consciente de que a condição submissa vai contra sua natureza e que, portanto, deve e pode ser alterada, ainda que para isso seja necessário adotar medidas drásticas. Cansada de carregar o que vai encontrando, querendo ou não – além da ancestralidade inalienável que teima em aparecer nos traços físicos da escravizada –, Alma anseia por qualquer ato mínimo, desde que voluntarioso. O valor da liberdade a fortalece e, mesmo fisicamente exausta, ela continua a jornadear em busca da autonomia, levando consigo apenas os sofrimentos dos quais não pode abrir mão porque a constituem, fazem-na ser e ter alma, única posse que autoridade alguma pode lhe arrancar. O ápice do texto é o final que transpira honestidade e destemor, garantindo à Alma um lugar de fala e ação inédito, mas já inabalável.


Ainda explorando o feminino, o conto “Doramar ou A odisseia” nos apresenta a mais uma mulher marginalizada. Doramar é empregada doméstica, praticamente imperceptível no palco da cidade grande, mas traz aquele que pode ser o conflito maior da obra, visto que tem início e fim nela mesma. A grandeza do cenário urbano, diferente do das outras narrativas, extremamente visual e bem ambientado, não ofusca a imensidão da protagonista, espécie de Ulisses a atravessar oceanos de concreto em uma metrópole injusta, onde o único companheiro que lhe sobra é um cão também impercebível e deficiente. Mais uma vez pesa sobre a personagem a carga inerente de sua hereditariedade, com a qual ela precisa lidar desde o nascimento até o momento final do texto, quando ela assume a palavra e produz metáforas poderosas.


Mas é sobretudo na questão das origens que o livro de Itamar Vieira Junior se assenta. Em “A floresta do adeus”, uma família se vê separada por fronteiras geográficas que, apesar de invisíveis, são temidas pelos homens que não se arriscam a transpô-las. A energia da genealogia que une cada membro do clã familiar, no entanto, ultrapassa esses limites intransponíveis pelo corpo material. O afeto motivado pelos vínculos sanguíneos entre as personagens cruza as barreiras militares e alcança o outro lado da cerca, o entusiasmo dos parentes rompendo as fronteiras e limites reforçados pelas armas dos guardas, intimidadoras, mas não o suficiente para desatar os laços que atam uma mesma ascendência.


Da mesma forma, no conto que dá título ao livro, “A oração do carrasco”, delineia-se a história de uma geração de homens carrascos. A profissão de algoz passa de pai para filho como uma herança involuntária e inegável. As primeiras páginas da narrativa reproduzem a iniciação do filho no ofício de verdugo, tido como heroísmo pela tradição familiar, maneira honrosa de servir ao país. Os sucessivos carrascos superficialmente defendem suas execuções como método legítimo de eliminar as mazelas sociais geradas por criminosos, quando no fundo não conseguem negar o paradoxo da posição de homem que mata a fim de, supostamente, extinguir os assassinatos.


O carrasco imola a si mesmo por um bem coletivo, imola a tranquilidade de dias em que não precise guardar em suas mãos a morte. Imola as noites de sono tão regradas do insone fardo que seus antepassados carregaram. Imola a cada sentença a sinceridade do pesar. Cultiva a indiferença. Sacrifica a solidariedade. Imola o perdão. Imola a possibilidade de mudança. Imola seu grito e segue seu caminho sem olhar para trás.

 

Desalinhadamente penetramos em conflitos íntimos de indivíduos acometidos pela culpa da qual não podem se livrar sem perder a própria identidade. A tradição que lhes antecede lhes concebe e lhes restringe. Como abdicar de um cargo que lhe foi designado desde o princípio? A inserção de figuras emblemáticas, como o Poeta e as vítimas reais de carnífices, colabora para a tensão do conto, certamente o mais nervoso e reflexivo do livro.


“Meu mar (Fé)”, texto doloroso, fala sobre a perda que decorre do abandono das origens, mas também da esperança imortal de uma mulher que precisa se fazer forte. “O espírito aboni das coisas” desenvolve a relação simbiótica entre homem e natureza, dois agentes indistinguíveis que se alimentam e auxiliam mutuamente. O uso do vocabulário indígena no conto reflete a pesquisa em estudos étnicos de Itamar Vieira Junior e cria um narrador espantosamente verossímil e humano. Já a narrativa que fecha a obra, “Manto da apresentação”, alude à loucura de Arthur Bispo do Rosário e vale-se de uma linguagem desordenada, que pela desordenação consegue acessar grandes temas e assumir as vezes de Mãe Natureza, sussurrando alento àqueles que caminham pela via crucis de ser.


A oração do carrasco cede a fala a quem nunca foi ouvido porque não teve a oportunidade de se expressar ou sequer foi ensinado a fazê-lo. A mistura de importantes temáticas descritas em períodos curtos, ainda tímidos, escolhidos pelo autor como composição majoritária das historietas, confere ao livro o estatuto de autenticidade e a Itamar Vieira Junior o posto de criador destemido, ainda nascente na arte da escrita, mas já confiante de que a literatura deve tratar daquilo que incomoda, crente de que seu papel como escritor é descortinar o que permanece encoberto pelas cortinas opressivas do hábito.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.

 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 


Assista também ao vídeo sobre o livro no canal LiteraTamy:



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